Storytelling - A reinvenção cultural da baleia
11/04/2024
A atividade baleeira açoriana constitui-se um sistema ecológico, sociotécnico e económico, adequado às ilhas e muito especializado, tendo sido uma resposta para o desenvolvimento da indústria insular, por intermédio da iniciativa de atores empresariais locais e estrangeiros, aliada ao tributo dos marítimos regressados da baleação oceânica. Trata-se de um dinâmico processo transcultural de representações e técnicas, que envolveu saberes e meios de produção de cachalotes e derivados, sendo consequente à abundância de recursos marinhos baleeiros, à consolidação da ilha do Faial como centro náutico, à frequência de navios da baleação atlântica anglo-norte-americana, à emigração baleeira e às relações sociais e económicas entre os Açores e os Estados Unidos.
A adequação das técnicas baleeiras ao sistema ecológico e económico das ilhas foi evolutiva, assistindo-se à adoção de navios-oficina de baleação itinerante, armados no porto da Horta, Faial (1848-1888), e às fases da sedentarização local, insular, interinsular e arquipelágica da exploração do cachalote (1851-1984). No espaço-tempo das ilhas, estas fases processaram-se sob a forma de indústria manufatureira, organizada por armações de pesca (vigias da baleia, canoas baleeirase lanchas da baleia) e de extração de azeite de baleia (caldeiros de fornalha) (1851-), e sob a forma de indústria mecânica, estruturada por sociedades empresariais-capitalistas, armadoras e transformadoras, capazes de praticar a pesca empresarial e de implantar modernas e inovadoras fábricas de aproveitamento integral (1937-).
O declínio da indústria baleeira insular começou nos anos de 1950, agudizou-se nas duas décadas seguintes e consumou-se, de facto, em 1984, com a desativação definitiva da fábrica da baleia de São Roque do Pico (1946-1984), propriedade das Armações Baleeiras Reunidas, Lda. (1942-1984). Fatores de ordem social, económica e axiológica/ideológica, associados à proibição de produtos extraídos dos cetáceos, no espaço da Comunidade Económica Europeia (1981), estão entre as principais causas que contribuíram para a desarticulação progressiva deste importante complexo cultural. No final das contas, esta baleação secular, que se especializara na pesca e industrialização do cachalote-comum (Physeter macrocephalus Linnaeus, 1758), grande baleia com dentes, terá sido responsável pela captura de cerca de 24.500 exemplares (1896-1984).
É precisamente na década de 1980 que se iniciou, de uma forma mais nítida, um movimento de construção social do património tradicional e industrial da baleia, desde logo com a inauguração do emblemático Museu dos Baleeiros (1988-), nas Lajes do Pico (Capital Baleeira dos Açores), e depois com a criação do Museu da Indústria Baleeira (1994-), no Cais do Pico. Atualmente, e após um longo processo de refundição da cultura baleeira, a nível insular, promovido necessariamente por entidades públicas e privadas, uma parte das bases materiais, tanto móveis (botes, lanchas) como imóveis (casas dos botes, vigias, caldeiros, fábricas), caracterizadas como património baleeiro regional (1998-), transformou-se em objetos lúdicos, patrimoniais e turísticos, assumindo-se como valores, recursos e suportes de identidade, memórias, significados e imaginários. Globalmente, trata-se de uma realidade seletiva e assimétrica, quanto às ações e aos resultados, materializada por processos de abandono, destruição, valorização, reutilização, patrimonialização e reconversão museológica. Resumindo e concluindo, quer isto dizer que esta atividade-memória é uma das manifestações mais relevantes da cultura das ilhas, sustentando tradições, saberes e práticas, artes e literatura. Paralelamente, por via disso, não deixa de estar aliada à economia azul da observação de baleias e golfinhos (whale watching), desde os anos de 1990, explorando-se agora o valor natural, mítico, histórico e iconográfico do cachalote, enquanto património dos oceanos e emblema simbólico dos Açores.
Tudo isto é cultura baleeira! Para esta grande viagem, o Pico Zen propõe uma visita ao Museu da Indústria Baleeira, às embarcações baleeiras, sob a gestão do Clube Naval de São Roque do Pico, e ao Centro Multimédia de São Roque do Pico (2003-), onde é exibido o bote motorizado Baleeira. Esta visita será orientada pelo etnólogo José Carlos Garcia e por um antigo trabalhador da fábrica da baleia, Senhor Manuel Dias.
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Location
José Carlos Garcia
Etnólogo